Como estudiosos do folclore sabemos, as histórias transmitidas oralmente através dos séculos frequentemente refletem os medos, desejos e dilemas da sociedade em que surgiram. “Rapunzel,” uma história italiana datada do século IX, não é exceção. Apesar de sua popularidade ter explodido na versão dos Irmãos Grimm no século XVIII, a narrativa original italiana oferece uma perspectiva fascinante sobre o papel das mulheres na Idade Média e a constante luta pela autonomia individual.
A história se passa em uma região da Itália onde as florestas escuras escondem segredos antigos e os costumes medievais ditam a vida dos camponeses. Uma mulher grávida, desejando desesperadamente um prato de ervas raras que só crescem em um jardim próximo a uma torre isolada, pede ajuda ao marido. Ele, relutante em desobedecer as ordens do feiticeiro que habita a torre, acaba cedendo à súplica da esposa. O preço? A promessa de entregar o primeiro filho nascido para servir como pagamento.
Assim começa a tragédia de Rapunzel. Abandonada por seu pai biológico, ela é criada pelo feiticeiro em uma torre sem janelas, com acesso ao mundo exterior apenas através de um fio de cabelo comprido e dourado que serve como corda para subir e descer.
A narrativa italiana original não menciona um príncipe encantado, mas sim um jovem camponês atraído pela beleza dos cabelos dourados. Ele, guiado por rumores sobre a donzela aprisionada, descobre o segredo da torre. Através de um diálogo constante com Rapunzel, ele se apaixona perdidamente por ela e trama um plano para libertá-la.
A fuga de Rapunzel, porém, não é simples. O feiticeiro, ciente dos encontros secretos entre a jovem e o camponês, aprisiona a donzela em uma caverna mais profunda na floresta. Ele corta seus cabelos dourados, tornando impossível a ascensão.
A história italiana termina com Rapunzel perdida no labirinto subterrâneo da caverna. O destino do camponês é incerto, sugerindo que a luta pela liberdade não termina com um simples “felizes para sempre.” Essa conclusão abrupta é talvez o aspecto mais perturbador de “Rapunzel” na sua versão original.
A Interpretação de “Rapunzel”: Uma Análise Simbólica
Embora a história pareça simples à primeira vista, as camadas simbólicas de “Rapunzel” são ricas e complexas:
- A Torre: representa a prisão da mulher na sociedade medieval, onde seus direitos eram limitados e seu destino frequentemente decidido por homens.
- O Cabelo Dourado: simboliza a beleza e a feminilidade da protagonista, mas também sua vulnerabilidade e dependência do controle masculino.
- O Feiticeiro: personifica o poder opressor que impede a liberdade individual, seja ele um pai autoritário ou uma sociedade patriarcal.
A ausência de um final feliz tradicional em “Rapunzel” desafia as expectativas do leitor e nos leva a refletir sobre a complexidade da luta pela autonomia. A história italiana original, ao contrário da versão dos Irmãos Grimm, não oferece soluções fáceis. Em vez disso, ela nos apresenta a dura realidade de um mundo onde a liberdade é conquistada através de sacrifícios, desafios e incertezas.
Comparando Versões: “Rapunzel” nas Tradições Literárias
A evolução de “Rapunzel” ao longo dos séculos demonstra o poder transformador da narrativa oral. A versão italiana do século IX, como discutido acima, é marcada por uma atmosfera sombria e a ausência de um final feliz tradicional.
A versão mais conhecida da história, popularizada pelos Irmãos Grimm no século XVIII, adiciona elementos românticos e melodramáticos. A presença de um príncipe encantado que salva Rapunzel da torre, o uso de magia e encantamentos, e o final feliz com casamento e vida próspera são características típicas das histórias de fada do período romântico.
Essa transformação da narrativa reflete mudanças sociais significativas. Enquanto a versão italiana original refletia as restrições impostas às mulheres na Idade Média, a versão dos Irmãos Grimm apresenta um ideal romântico de amor e liberdade que se tornava cada vez mais popular no século XVIII.
Versão | Contexto Histórico | Elementos-chave |
---|---|---|
Italiana (Século IX) | Idade Média | Prisão, sacrifício, busca pela liberdade sem final feliz |
Irmãos Grimm (Século XVIII) | Romantismo | Amor romântico, príncipe encantado, magia, final feliz tradicional |
A análise comparativa das diferentes versões de “Rapunzel” demonstra a riqueza e a versatilidade do folclore. Através da adaptação da narrativa às diferentes épocas e contextos sociais, a história continua a nos desafiar e a nos inspirar, revelando os anseios, medos e sonhos da humanidade ao longo dos séculos.